Monday, February 12, 2007

O porquinho Tóti

Uma de minhas tias morava em um sítio em Mogi das Cruzes (estado de São Paulo), continuando sua vida rural de infância. Meu pai, muitos anos antes, havia vindo para o município de São Paulo, deixando a vida na roça e o trabalho de ‘bóia-fria’ na Fazenda Amália, da família Matarazzo, no interior de São Paulo, região de Ribeirão Preto.

Como havia tempo que eles não se viam, fomos visitá-los; meu pai, minha irmã e mais um amigo ‘japonês’ de meu pai, chamado Maquio.

Foi uma experiência incrível, a primeira marcada em minha memória, um garoto de 6 anos, criado sem permissão de sair à rua e que, sem a proteção da mãe, descobre uma nova realidade: primos da mesma idade sujos de terra, de pés descalços, com o rosto marcado pelos restos de alguma fruta e alegres, muito alegres, de tanto brincar pelo ‘terreiro’.

Maquio nos leva a uma caminhada exploratória pelo terreno desconhecido, onde despontam muitas flores e plantas de nomes estranhos, bichos voadores que nos ‘atacam’ (moscas, borboletas etc.) e, após caminhar entre os patos, descobrimos, numa parte baixa do terreno, uma criação de porcos.

E, lá estava ele, o Tóti: um leitãozinho, de narizinho furado à frente e esperto, muito esperto... Enquanto seus irmãos caminhavam ao lado da ‘porca-mãe’, ele corria desenfreado, pulava, caia, rolava, parecia ter uma vivacidade própria, uma personalidade diferente dos demais.

Maquio consegue pegá-lo e, com uma pequena varinha, começa a coçar-lhe a barriga, enquanto o Tóti, de pernas pro ar, se aquieta e desfruta do carinho repentino.

Assustados, porém ansiosos, eu e minha irmã nos revesamos na tarefa de esfregar a varinha nele e passamos algum tempo nos divertindo como nunca.

Meu pai nos conta como fazia a mesma coisa muitos anos antes e nos surpreende dizendo que levaríamos o Tóti para casa, não para brincarmos com ele, mas para nos servir de ceia no Natal, seis meses distante.

Foi uma alegria só naqueles dias, dando de comer a ele, observando seu comportamento, seu crescimento e o ‘praguejar’ de minha mãe pela sujeira e as moscas no quintal cimentado de casa.

Interessante como os animais, penso que qualquer um deles, principalmente os também pequenos, entendem as crianças. Conversava com ele, passávamos horas juntos, bastava ele me ver que corria pelo pequeno chiqueiro improvisado.

Porém o dia esperado chegou, num misto de tristeza pela perda do amigo e de expectativa em ver como se ‘matava um leitão’, segundo dizia meu pai, de cima de toda a sua afamada experiência no ato. Dizia ele que, com uma facada certeira, sob a pata esquerda dianteira, atravessando o peito, se atingiria o coração e, então, quase indolor, o pequeno animal morreria ‘tranquilamente’.

Para evitar o trauma inevitável, minha mãe levou minha irmã menor à casa de uma outra tia e eu fiquei para acompanhar papai e aprender como se faria o sacrifício e a preparação para o assamento, que se deu no forno de uma padaria, previamente negociado por meu pai.

Tóti foi retirado do pequeno chiqueiro e trazido para perto de um ralo, por onde deveria escorrer o sangue do pobre coitado. Uma faca bem afiada foi empunhada e o animalzinho, talvez como que percebendo seu destino, fez um olhar doce em minha direção.

Um enorme silêncio se fez e vi a faca descendo pelo ar, quando... Tóti começou a gritar. Foi horrível assistir aquilo, meu pai transtornado pela decepção, passa a esfaquear o peito do pequeno porquinho, que berrava em desespero.

Não conseguia acreditar na cena, pensando que talvez ele não tivesse coração ou que, de tão bonzinho, seu coração fosse enorme que não se conseguiria parar...

De repente, novamente o silêncio, meu pai suado, com as mãos sujas de sangue, comenta espantado a resistência do bichinho e eu, bem, somente olhava para o pequeno animal, agora imóvel ali no chão.

Todo um ritual se seguiu para abri-lo, limpá-lo, assá-lo, até que à mesa se postou, ainda com olhar meigo, mas sem vida.

Creio que o Tóti não morreu, mas partiu para algum lugar onde ficam os corajosos, os destemidos, aqueles que enfrentam o momento final com bravura e não se rendem às evidências da não-existência.

Talvez nunca mais o veja, mas não preciso, pois levo comigo sua presença na lembrança que, de tão boa, por vezes me faz ouvir suas brincadeiras ao meu lado.

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