Sunday, March 01, 2009

Coisa de vô!

Os dias de escola chegaram e com eles uma nova porta de possibilidades se abriu: novas tarefas, novos amigos, e com eles as descobertas de um mundo desconhecido.
As disputas com as bolinhas de gude à porta de casa pareciam infindáveis. Os jogos de bola na rua de terra impunham novos relacionamentos: separavam os da turma da rua dos demais, agora sempre adversários.
As lições de casa estremeceram as relações familiares e passaram a impor limitações às alegrias da escola, mas não diminuíram a espera pelo recreio e as aventuras e brincadeiras no exíguo tempo disponível.
Parece que ultrapassar os limites faz parte da natureza humana e a curiosidade sempre foi maior que a noção de perigo, o que pode ser visto especialmente nas crianças.
Naquela época o bairro ainda não tinha a infraestrutura imposta pelo desenvolvimento e a criançada se divertia pelas ruas, após as aulas. Não muito distante havia um amplo espaço desabitado, onde se praticava o futebol amador, lugar conhecido como "7 campos", obviamente pelo número de campos de futebol contíguos e abertos ao público.
Na mesma região havia uma pequena lagoa, onde a criançada, ou melhor, aqueles autorizados pela mãe ou sob os 'riscos maternos', iam brincar de pegar peixinhos. Na realidade não era uma pescaria de verdade, e nem mesmo fossem aquelas pequenas criaturas com cabeça grande e único rabo descendentes dos peixes.
Mas a diversão esteva mesmo ai: com uma pequena lata aberta, aproximar-se da beira, separar o mato com uma das mãos e mergulhar a lata, retirando-a cheia d'água e de girinos. Em seguida, passava-os para um saco plástico para, em casa, cuidar deles por uns dias e descartá-los em seguida, sem o menor sentimento de culpa.
Vários amigos se juntavam, quase semanalmente, para enfrentar o desafio da 'pescaria'. Não demorou muito para que os convites iniciais se tornassem em intimação, com severas penalidades no futebol para os ausentes.
Neste ponto as coisas se complicaram, pois a senhora do lar havia pronunciado em alto e bom som:

- Você não vai pegar peixinhos!

A advertência não era nova, mas naquele dia muita coisa estava em jogo. Uma estratégia deveria ser traçada para acomodar todas as necessidades.
Primeiro nada dizer a ela sobre a intenção de integrar o bando de pescadores, ocultando todos os preparativos. Depois, sair como de costume para a rua sem despertar a atenção, como se fosse para uma partida de futebol. Participar com os amigos, porém de forma breve, por um pouco de tempo, suficiente para capturar uns pares de exemplares e retornar logo, sozinho.
O plano perfeito fracassou, não fosse um pequeno detalhe sobrenatural e desconhecido até aquela data, que mostrou toda a sua eficácia: o 6º sentido das mães.
Ao aproximar-me de casa, coisa de um quarteirão, vi ao longe no portão um vulto agitado com a aparência de alguém conhecido: era ela e já com algo à mão.
Bem, agora o cenário era desalentador; poucas opções minha mente conseguiu elaborar: a) fugir imediatamente de casa; b) dizer que fora à casa de um amigo que me dera os peixes ("a mentira tem pernas curtas", havia aprendido); c) encarar a situação na expectativa de que, contando a verdade, as coisas se amenizassem.
Enquanto caminhava, o saquinho cheio d'água com os desafortunados girinos denunciavam a desobediência. Enfim, ao chegar ao portão consegui apenas exclamar:

- Mãe, olha quantos consegui pegar!

A única coisa de que me lembro foi:

- Não te disse para não ir?

Nunca foi despido tão rapidamente em minha vida, nem na lua de mel. A bermuda molhada, camiseta e cueca ficaram ali mesmo num canto do banheiro, enquanto violentamente a sua porta
foi fechada e aquela cinta, que estava à mão não sei por quanto tempo, sobe ao ar como em um movimento em câmera lenta (igual àquelas cenas do Jet Lee!) e...
De repente, como por um milagre, a porta se abre, meu velho e bom avô adentra ao banheiro (parecia o 'The Flash') e me joga por entre as suas pernas. A cinta em movimento descendente acerta suas pernas, mas parece que ele sequer percebe.
Salvo pelo amor do "velho", como era chamado, que deveria saber da alegria da pescaria em seus tempos de criança no interior mineiro, fiquei apenas com as imagens desvanecidas do episódio que me ensinou a:
1) respeitar minha mãe; e
2) amar muito mais meu querido avô.

Bem vindo à vida!

Uma das coisas mais interessantes da vida é que ela nos leva a lugares diferentes. Cada lugar tem suas características peculiares, seus atrativos ou seus repulsivos.
Um dos que menos gosto é hospital. Via de regra, ninguém vai fazer um passeio lá, se divertir, descontrair, pois ali não é lugar de lazer.
Por maior que seja a hospitalidade, os hospitais representam lugares doentios, onde por vezes até se disseminam males por entre as pessoas. Pois lá estava a aguardar notícias.
Como é dura a espera, como pode ser difícil a expectativa, porque pode destruir a esperança e aniquilar num só instante todos os planos e projetos.
Naquela alvorada nascente, cujo testemunho adentrava o ambiente acinzentado pelas frestas das janelas, assentados, sem palavras, imersos no silêncio de ninguém, os pensamentos navegavam pelos portos do passado, buscando embarcar as emoções do momento e ancorar nos planos, amplamente discutidos, para o futuro daquele que estava por chegar.
Os filhos são, realmente uma herança, um rico presente, d'Aquele que outorga a vida e as possibilidades da sua construção.
Como é bom receber boas noticias! Meses antes a informação da gravidez adentrou nossas vidas e as modificou, mesmo sem as evidência visíveis da sua presença. O fato de que geramos alguém traz uma alegria indescritível.
Como será ele ou ela? Com quem se parecerá? Do que gostará? Como será chamado (a)? Ah, essa creio, talvez a primeira decisão acerca da vida incubada.
Listas de nomes, lembranças associadas a antepassados, a personagens conhecidos, podem qualificar, ou não, potenciais candidatos. A escolha parece fácil, mas caracterizará para sempre o seu possuidor. Dizem até que pode influenciar a sua personalidade.
O nome já estava escolhido, pois a tecnologia proporcionou a descoberta daquela que era, tempos atrás, a maior expectativa dos pais. O enxoval selecionado e pronto para embalar o pequeno príncipe. Alguns brinquedos preparados para começar a divertir o herdeiro e encaminhá-lo ao mundo das fantasias.
Enquanto estes pensamentos circundavam a mente, o corpo agitado não se continha na sala de espera e, sob a força da ansiedade, percorria várias vezes o pequeno espaço reservado da maternidade.
Num momento de surpresa a alta e pesada porta se abre e um vulto branco adentra o recinto e, retirando sua máscara, pronuncia aquela frase que repercutiu fortemente em nosso íntimo:

- É um menino!

Bem, isso já se sabia, inclusive ela mesma, e, ansiosamente surgem as perguntas:

- Ele está bem? E a mãe?

Poucas palavras pronunciadas quase sob engasgo declaram as emoções incontidas.

- Sim, ambos estão bem!

Irresistivelmente as lágrimas rompem as comportas dos olhos e escorrem, lavando o imenso sorriso que se abre.
Lançamo-nos um ao outro, pai e filho, que compartilham juntos do momento único. Abraçamo-nos apertadamente na frente da obstetra, que talvez tenha vivenciado a cena dezenas de vezes, mas espantada com o rompente nos abraça, saindo rapidamente para terminar o divino trabalho de auxiliar a natureza no processo da vida.
A espera agora já não angustia e nos leva à presença do esperado, cabeludo, olhos claros e calmo, muito mais calmo do que a maioria das crianças.
Que a vida seja sempre bem-vinda! Que ela sempre traga a promessa da alegria, da esperança e da sua continuidade.

Como vai você?

- Eu estou bem!

Nunca entendi bem esta afirmação e jamais saberei o seu correto significado, enquanto estiver neste mundo.
É interessante como a palavras podem ser usadas e a mensagem que transportam ficar incompreensível.
Ali, naquele momento, a primeira impressão seria a de que tudo estava bem, apesar da consternação geral.
Além da frase, as lembranças, que se dispersam como as nuvens na alvorada, reconstroem a imagem do cenário todo branco, das paredes, lençois, uniformes, bem como do silêncio ensurdecedor.
Já não era a primeira vez, mas sempre esperamos, desejamos, lutamos para que momentos tristes, de apreensão, não se repitam. Por que o sofrimento nos rouba o ânimo tão violenta e rapidamente? Por que de assalto nos sobrevêm a dor e a angustia?
A despeito da fragilidade da vida, a grande expectativa é a de que ela nunca acabe, nunca se esgote pelo ralo do universo.
Vestido apenas com o avental branco, barba por fazer, de chinelos e sem nada mais, inclusive daquele anel dourado que por mais de 40 anos significou uma feliz vida conjugal, estava pronto para enfrentar novamente o desafio de encarar a morte de frente, olhar nos olhos dela e partir para a luta.
Pena que o ânimo, a coragem e todo o apoio possíveis, não foram suficientes. Acredito que por muitas vezes, incontáveis 'rounds', acabamos por vencer e a deixamos caída, derrotada, humilhada, mas não sem vida, pois ela se levanta, se reconstitui e, um dia mais tarde, nos encara de novo e nos vence.

- Eu estou bem!

Talvez seu desejo fosse nos poupar; fosse a vontade de que partilhássemos apenas dos bons momentos; fosse um grito profundo para expressar seu amor e cuidado para com aqueles que amava.
Por mais que quiséssemos evitar, ou não demonstrar, não estávamos bem. Como poderíamos se reprisávamos a mesma cena de quinquênios atrás, com a aflição e comoção penetrantes?
Seu olhar brilhante ainda mantinha o vigor e a atração genuínas, transmitindo a calma e o carinho de um pai que soube se fazer modelo para todos com os quais conviveu.
Mais difícil foi ouvir a frase posterior que indicava a derrota mortal:

- Sinto, mas fizemos tudo o que foi possível!

Realmente, parece que a vida se constroi dos possíveis. A cada dia que passa os homens conseguem empurrar as fronteiras do impossível um pouquinho mais para trás. Contudo, a vida continua delimitada pelas possibilidades da fragilidade, pelos muros da fraqueza, pelas cercas do envelhecimento.
Aquele pequeno coração vacilante não conseguiu resistir às demandas da intervenção, cessou de bombear o suco da vida por suas artérias e deu-se por vencido.
Revi-o, ainda, dentro de sua última vestimenta, ali deitado sobre uma fria mesa de mármore branco, gélido, inerte, sem o brilho no olhar, sequer com a energia para balbuciar para mim aquelas mesmas palavras, mas não precisava mais, porque estou certo de que, se pudesse, as pronunciaria com a mesma convicção:

- Eu estou bem!